Como alinhar gestão, sucessão e valores do fundador
As empresas familiares são preponderantes quando analisamos o conjunto de organizações existentes na maior parte do mundo; empregam parcela significativa da população trabalhadora e contribuem com uma parcela muito alta de tudo o que acontece no ambiente empresarial. São muito diferentes entre si e isso pode ser explicado de muitas formas, mas a principal é que elas têm a sua própria dinâmica.
O tema sucessão aparece de maneira forte quando se analisa o tripé clássico dos eixos da empresa familiar: a família, a propriedade e a gestão. O tema família fala por si; a propriedade indica como a empresa será controlada e a gestão faz com que a empresa tenha a sua sustentabilidade. Muito pouco tem sido estudado fora do tema sucessão, tema relacionado primordialmente à maneira como se entrelaçam a família e a propriedade
Sucessão sem dúvida é um tema crítico para as empresas familiares e é um processo contínuo, devidamente planejada e sendo olhada por ambos os lados, ou seja, do lado da empresa quando demanda uma dada estrutura e, para essa estrutura, necessita de pessoas que possam desenvolver as atividades e ao mesmo tempo, do lado da família no sentido de não só disponibilizar mas também perceber os membros da família ocupando esses espaços ao longo da vida da entidade para que ela continue sendo uma empresa familiar.
Devemos deixar claro que o termo empresa familiar não é o oposto de empresa profissionalizada. Para evitar esse mal entendido, alguns autores utilizam a expressão família empresária ou empresas controladas por famílias. Entretanto, tendo em vista a forma internacional de identificar family business, a expressão empresa familiar será preservada neste texto.
Os estudos têm demonstrado que o afastamento, de fato, do fundador é um momento especial da vida da empresa, existindo necessidade ou oportunidade de mudança de modelo de gestão, dado que a saída de alguém com profundo impacto no direcionamento das atividades mexe com a organização de maneira intensa. Alguns elementos devem ser considerados nessa transição. Na gestão, alguém novo irá desenvolver atividades com necessidades diferentes daquela vivida pelo fundador que definiu, formalmente ou não, valores, crenças e modus operandi. Essa situação ocorre em vários momentos de renovação da gestão, nas várias gerações mas, certamente, é mais forte quando o fundador se afasta, com mudanças inevitáveis no modelo de gestão.
O modelo de gestão é a forma particular de cada organização desenvolver as suas atividades, com combinação de estilos, mecanismos e prioridades. Por exemplo, ímpeto para o crescimento ou visão conservadora, com flexibilidade ou rigidez, top down ou bottom up, nível de participação e mesmo valorização da intuição e ou buscando informações objetivas. A troca de pessoas dentro da estrutura de poder altera esses elementos e traz mudanças na valorização de vários estilos. O que torna mais complexo o tema é que o modelo de gestão, com o desenvolvimento das empresas, embora venha de cima para baixo, não se baseia apenas nos principais dirigentes da organização mas sim nos vários níveis gerenciais, criando o que chamamos de massa crítica organizacional. Ela proporciona estabilidade e viabiliza as atividades no seu dia-a-dia. Com isso a demanda por estruturação nos vários aspectos, inclusive conceitual, pressiona e tensiona os gestores.
Herdeiros, preparados ou não, vão provocar mudanças no modelo de gestão da empresa porque a presença do fundador, normalmente personalista, com sua ausência, demanda espaço, prioridades e forma de pensar que normalmente na sua substituição são ajustados, trazendo mudanças.
Pelo modelo mental comumente encontrado nas empresas familiares, existe uma predominância de baixa ênfase em mecanismos objetivos, já que a família está presente nas atividades da organização e o elemento confiança é estabelecido nos vários níveis e operacionalizado nas atividades de gestão. As crenças e valores, formalizadas ou não, imprimem o direcionamento. A introdução de mecanismos de planejamento e controle estruturados não eliminam a intuição mas sim a aperfeiçoam pois o modelo intuitivo não permite comparação e, como consequência, aprendizado organizacional. Mais do que isso, além do poder estabelecido pela propriedade, a objetivação da gestão por meio de relatórios, metas e outros mecanismos viabiliza uma lógica de legitimação muito prática para o dia a dia das organizações.
Empresas com portes diferentes acabam utilizando mecanismos diferentes e existe uma certa sequência de complexidade e evolução. A primeira grande demanda e que normalmente surge a partir de uma crise é o fluxo de caixa. Passa a existir planejamento por um período curto até que a organização entenda que o fluxo de caixa planejado é um mecanismo de extrema necessidade para que, ao equacioná-lo, os executivos possam dedicar seu tempo a outras oportunidades, o que é pouco provável de acontecer quando a pressão do curto prazo estiver latente. Em algum momento o conselho de gestão é instalado e passa a discutir resultados reais e planejados. Metas são estabelecidas e acompanhadas.
Uma segunda demanda decorre da necessidade de entender o custo e a margem reais. Sem um sistema contábil confiável a intuição jamais será desafiada e muitas decisões serão tomadas sem amparo objetivo. Para ter sucesso é importante que a contabilidade gerencial seja uma palavra levada a sério e isso demanda um razoável aprendizado. A informação real, histórica é relevante mas pobre pois nada garante que o passado se repita no futuro. Nesse momento a organização percebe que ter uma contabilidade voltada para a demanda gerencial agrega valor e investe em sistemas e gente. Uma vez implementada a base para montagem do orçamento está disponibilizada e a organização passa a viver um momento importante em que a melhor forma de controlar é… planejando.
A nova demanda diz respeito a indicadores, financeiros e não financeiros que permitam analisar, projetar e controlar o desempenho da organização. O uso dos indicadores gera reflexões e pressões pela busca por melhor desempenho e isso motiva os executivos a utilizá-los de forma contínua. Dependendo do porte e complexidade da organização, a utilização dos indicadores pode levar a empresa a implementar algum tipo de painel de indicadores, o que amplia o potencial de entendimento da realidade empresarial. É como fazer um check up e perceber onde a empresa está bem e onde precisa de melhorias. Com esse conjunto a organização pode pensar na formalização do processo de planejamento estratégico que terá estrutura para ser desenvolvido e utilizado.
Uma coisa importante nessa viagem para a objetivação é que não existe um modelo único e certo. A organização vai se adaptando e demandado mecanismos, ao mesmo tempo que vai ocorrendo amadurecimento das pessoas na utilização dos mecanismos.
A ordem de implantação dos mecanismos pode ser diferente mas, para os dirigentes, o conjunto se constitui em ingredientes fundamentais para que eles tenham a oportunidade de desenvolver a empresa, certamente com mais segurança do que o fundador o fez. Esse conjunto de elementos subjetivos e objetivos só existem para colaborar com a gestão das organizações. Contribuem para o sucesso dos herdeiros ao longo das gerações.
Afinal a sucessão na empresa familiar sempre será um tema importante e pode ser apoiado por mecanismos que permitam que o instinto não deixe de existir mas seja um item a ser também gerenciado. A sucessão poderá ser um dos vários recomeços na longa trajetória da empresa se os mecanismos que combinam a intuição e a objetividade estiverem presentes. Com isso a sucessão não será o fim. Será mais um recomeço.
Por Fábio Frezatti*
Coordenador do Laboratório de Pesquisas em Práticas Gerenciais – Faculdade de Economia e Administração da USP
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