Herdeiro e… cidadão! A geração que pode fazer a diferença. Quem diz é Daniela de Rogatis
“Um herdeiro é sempre visto como alguém com privilégios, mas suas responsabilidades são exponencialmente maiores do que os seus privilégios”, assegura Daniela de Rogatis, uma das mais respeitadas criadoras de programas de desenvolvimento e formação de herdeiros de abastadas famílias empresárias do país, em entrevista exclusiva ao FBFE, em sua sala na Rogatis Family, no Pacaembu, em São Paulo.
Trabalhando com jovens herdeiros de diferentes idades, mas abaixo dos 45 anos, Daniela diz já perceber uma substancial mudança na forma como eles concebem seus papeis na sociedade, levando em conta serem os futuros donos das fortunas de suas famílias. Diferentemente da geração yuppie, para a qual só interessava o “dinheiro pelo dinheiro” (pessoas hoje entre 45 e 50 anos), as novas gerações se preocupam com sua inserção no mundo, com seu país, sua cidade, sua comunidade, o planeta, e podem restaurar valores perdidos. Seriam mais humanizadas e responsáveis com os demais seres humanos e a saúde do meio ambiente. Acompanhe o que ela diz:
FBFE - Deve ter havido uma forte motivação para você direcionar seu interesse profissional á formação de herdeiros de famílias ricas. Poderia falar sobre isso?
Daniela de Rogatis: Existe uma confusão sobre o conceito de que uma pessoa nascida num cenário privilegiado terá poucos desafios ou poucas dificuldades à frente. Eu entendo que uma criança que tem dois brinquedos terá que cuidar de dois brinquedos, já uma criança que tem 200, terá que aprender outras habilidades muito maiores para poder cuidar de tantos. Se a gente não ensina desde cedo as crianças inseridas num cenário de privilégios socioeconômicos a lidar com tamanho desafio, ela chegará à idade adulta com menos competências do que deveria ter para lidar com o que a vida lhe apresentará, aí sim, com um desafio real. Um herdeiro é sempre visto como alguém com privilégios, mas na minha concepção as responsabilidades de um herdeiro são exponencialmente maiores do que os seus privilégios. Esse é um dos pontos que me levaram a esse assunto.
FBFE – A formação de jovens herdeiros falhava em relação aos desafios que iriam enfrentar, mas em que aspectos?
Daniela de Rogatis: O desafio nunca é somente o da sucessão. “Meu pai era o presidente da empresa, agora eu que vou ser. Como devo me preparar para isso?” A questão, num espectro mais amplo, no entanto, é saber qual é o meu papel frente a essa riqueza. Capital tem função social, não tem função de somente promover uma vida de bem estar a alguém. Tem principalmente o objetivo de voltar ao setor produtivo e produzir mais benefícios para a sociedade. A responsabilidade de um herdeiro, seja ele o que vai suceder, seja o que vai ser acionista, ou acionista e conselheiro, ou aquele que optar por não atuar na empresa familiar, mas fora dela – em qualquer situação esse herdeiro terá desafios e problemas bastante amplos para resolver. Eu penso que até hoje a formação dessas pessoas tem sido bastante precária.
FBFE – A que conceito de formação você se refere? Formação é o que se aprende na escola ou formação é o combinado do que se aprende na família, na escola e com a cultura em que estamos inseridos?
Daniela de Rogatis: A formação deve ser integral, porque você precisa ter uma pessoa que entenda seu papel num campo maior. Quando a gente falou lá no começo em ter dois brinquedos ou 200… Para quem nasce num cenário privilegiado o campo é muito amplo. Não adianta ser simplesmente bom profissional, ou executivo dentro da empresa da família, mas não ter equilíbrio dentro da sociedade e dentro da própria família. Quando não se tem uma pessoa integralmente formada, uma pessoa que esteja bem consigo mesma, que tenha entendimento de seu papel, que domine as ferramentas para exercê-lo, com certeza ela não cumprirá 100% de seu potencial.
FBFE – Com integral o que você quer dizer? Família, escola, sociedade… como se articula isso para formar essa pessoa?
Daniela de Rogatis: É preciso olhar de acordo com a idade, verificar quais são os desafios para o próximo ciclo. Um ciclo normalmente tem de três a cinco anos. Quais são os desafios dentro desse ciclo. E eles normalmente envolvem esses três eixos. A escola não é mais só para uma criança de três, 15 ou 17 anos, porque o conceito de formação acadêmica, de obtenção de conteúdos, de conhecimentos, é para a vida toda. É um eixo que as pessoas geralmente abandonam depois que saem da faculdade, mas para quem tem os desafios da riqueza nunca pode ser abandonado. Por outro lado, quanto à formação em valores, que é o que vem da família, às vezes eles estão ótimos, outras vezes é preciso reajustá-los com os pais, discutir e chegar a novas bases. Esse também é o eixo das relações. O que vamos sustentar, ou seja, qual é o contexto dessa riqueza. Além disso, não existe ninguém independente da sociedade. É o que eu coloquei na palestra (durante a segunda edição do FBFE Mulher SP, em 21/06/2017): a gente tem que ter contato. Quem não tiver contato com a realidade maior em que está inserido, por mais que seja um ótimo empresário, um ótimo executivo, um ótimo profissional, terá sua atividade desvinculada do contexto. Estará sempre numa potência menor. O objetivo desse tipo de formação é que o jovem esteja na sua potência máxima, porque precisará fazer o esforço do maior aproveitamento possível de seu capital, e não só para si e os negócios, mas para seus funcionários e para a comunidade no entorno.
FBFE – “Nenhum homem é uma ilha”, como disse o poeta inglês John Donne, e como você diz: a gente não está solto no planeta.
Daniela de Rogatis: Esse é um dos principais conceitos que, hoje em dia, com o mundo globalizado, precisa ser trabalhado. A gente vê esses jovens muito soltos no espaço e tempo. Eles podem ir para onde quiserem, na hora que quiserem. Eles se mudam e o capital vai com eles. Esse é um conceito que precisará ser modificado para a próxima geração, a não ser que a gente mude de planeta. Se cada um não cuidar da sua localidade, se não tiver um senso de responsabilidade local, a gente não avança como coletivo, como humanidade.
Em busca da cidadania perdida
FBFE – Sua família é brasileira? Qual a formação de seu pai?
Daniela de Rogatis: Minha família é brasileira e meu pai é engenheiro civil, formado pela Poli (Escola Politécnica da USP). Minha formação tem como liderança o meu pai, não as universidades. A partir do momento em que manifestei meus interesses, ele me orientou e conduziu. Sempre costumo dizer: não é porque a gente estudou nas melhores universidades que tem a melhor formação. Inclusive porque a universidade não trabalha dentro do “seu projeto”, mas dentro do “projeto dela”. No caso da formação acadêmica para o meu trabalho, meu professor chave foi o neurobiólogo chileno Humberto Maturana (crítico do realismo matemático, criador da teoria da autopoiese e da biologia do conhecer, um dos propositores do pensamento sistêmico e do construtivismo radical). Também estive em Harvard e lá tive acesso a bons professores.
FBFE – Boa parte da sua formação foi realizada nos EUA. Você percebe alguma diferença substancial de formação entre norte-americanos e brasileiros no que se refere à maneira como se relacionam com o planeta e as comunidades às quais pertencem? Nos EUA, donos de grandes fortunas costumam fazer doações consideráveis para a pesquisa científica, para as artes, para o desenvolvimento tecnológico, algo que se reverte diretamente em benefício social.
Daniela de Rogatis: A grande diferença é que lá tem um espírito de cidadania muito diferente. Nas estradas interioranas dos EUA, a cada 500 metros há um poste com uma bandeirinha do país. Quando a gente chega numa cidade, a primeira coisa que a gente vê é a bandeira do país deles. A maneira de norte-americanos e mesmo de europeus se relacionarem com seus países é completamente diferente. O brasileiro canta o hino no jogo de futebol. O norte-americano canta na escola, nos dias das festividades cívicas, que são levadas muito a sério, nos EUA. No Brasil a gente não tem essa cultura. Segundo que o complexo entre ciência-universidade-empreendedor-empresário-sistema financeiro nos EUA funciona. E funciona porque eles sempre tiveram o seu núcleo de cientistas e a integração da escola com a empresa, no sentido do financiamento, é muito maior do que em qualquer outro país do planeta. A universidade é parte do sistema de produção de valor do país.
FBFE - No Brasil o empresariado seria indiferente ao desenvolvimento científico e às artes?
Daniela de Rogatis: No Brasil nós temos o legado da ditadura, que separou a universidade do empresariado. Você tem empresários que gostariam de investir em ciência e nas universidades, mas os cientistas e a própria direção das universidades acham que serão cooptados pelo sistema capitalista. Assim, não permitem a formação da cadeia de geração de valor. O Brasil tem esse problema a resolver, bem diferente do que a gente tem em outros países.
FBFE – A China, por exemplo?
Daniela de Rogatis: Sim. Mesmo a China, que é um país ainda autoritário, teoricamente comunista, tem essa relação muito mais organizada do que o Brasil. Aqui o governo não financia, porque não tem recursos; e a empresa não financia porque não é benvinda. A gente tem aí um vazio no investimento de ciência em nosso país, o que traz um prejuízo gigantesco. O terceiro ponto é a questão da filantropia. Os EUA é um país muito mais avançado do que o nosso em legislação sobre as grandes fortunas. A lei é muito bem feita e boa parte das doações, tanto para as ciências quanto para as artes, é feita a fundações em seus projetos sociais, vem do fato de que há uma legislação que beneficia e promove esse tipo de investimento, mas nada teria acontecido e produzido esse movimento se não houvesse o espírito de cidadania no país.
FBFE – Os cidadãos norte-americanos têm entranhada em sua cultura o relacionamento com o local. Eles sentem que é deles e que têm que cuidar.
Daniela de Rogatis: Eles sempre dizem: ‘Nós, os EUA da América’, na primeira pessoa do plural. Nós somos os EUA.
FBFE – Isso tem a ver com as razões da própria colonização. Os ingleses que migraram da Inglaterra para a América o fizeram para criar um novo país, o país deles. Eram conservadores, haviam rompido com o país de origem, julgado liberal demais para eles, e estavam dispostos a qualquer sacrifício.
Daniela de Rogatis: É uma gente ligada ao trabalho, à propriedade privada e aos direitos individuais. Aqui é o oposto. No Brasil a gente valoriza o apoio, não o trabalho. Temos muito a avançar nesse sentido. Nos EUA, gerar riqueza é uma virtude; aqui, nem sempre. Quanto ao que foi perguntado, e grosso modo, temos a nossa história com a ditadura militar, que trouxe um desserviço nessa conexão da universidade como parte do sistema produtivo.
Sem concorrentes
FBFE – Até que ponto grande parte do empresariado compactua com isso?
Daniela de Rogatis: Sem dúvida, temos um empresariado que se beneficia de um país que é fechado, ou seja, de uma competição menos acirrada, e um mercado consumidor que tem ausência de oferta. Para as indústrias e os negócios sobreviverem você não precisa ter grandes inovações. Compra-se uma máquina velha na China, que era usada para fabricar um produto de dez anos atrás e ela possivelmente serve no Brasil. É um processo, temos que melhorar muito.
FBFE – Como essa mentalidade pode ser alterada?
Daniela de Rogatis: Vai depender de uma geração com outra postura. Que queira participar do que a gente chama de globalização real. Que seja competitiva não no sentido da competição animalesca, em que um prejudica o outro, mas de encontrar no Brasil coisas que possamos produzir, que tenham nossa identidade e sejam de uso do planeta inteiro. Que seja capaz de romper com esse passado de isolamento entre a universidade e o empresariado. Que vai investir em ciências e buscar novos campos de desenvolvimento. Nós temos, em termos de ativos nacionais, entre meio ambiente, energia, água e mercado consumidor, possivelmente, o maior potencial do mundo para desenvolvimento, mas a gente não tem leis, nem espírito ainda, para transformar tudo isso. Hoje o jovem encontra um cenário de muita dificuldade para empreender, para abrir ou fechar uma empresa, para fazer um projeto que não seja bem sucedido e aprender com ele. As leis do Brasil são leis que seguram o empreendedorismo em vez de estimular e fazer avançar. Eis o desafio: a juventude terá de introjetar novos valores.
FBFE – Os EUA acabaram de eleger um presidente que propõe o fechamento de um país que sempre foi extremamente aberto e que contribuiu inclusive para o desenvolvimento que se observa hoje na China, devido a embaixadas de Henry Kissinger (secretário de Estado norte-americano nos governos Nixon/1969-1974 e Gerald Ford/1974-1975). Será que o Brasil não perdeu o bonde?
Daniela de Rogatis: Perdemos vários e estamos perdendo mais um. O Brasil precisa fazer uma regeneração total de seus valores. E esse é um movimento que essa nova geração vai precisar fazer.
FBFE – Nova geração? Que idade?
Daniela de Rogatis: Da minha geração para baixo, 45 anos para baixo. Hoje nós deveríamos ter um presidente de 45, 50 anos no máximo. Deveríamos ter um Congresso de 36 a 50 anos. O Senado poderia ter pessoas com idades mais avançadas, no sentido de organizar o ritmo das coisas.
FBFE – No restante do mundo os governos estão nas mãos de pessoas mais velhas.
Daniela de Rogatis: Mas não tão mais velhas. Já tem um movimento de renovação dos governos por todo o mundo.
FBFE – Por que os jovens governariam melhor?
Daniela de Rogatis: Neste país nós precisamos de novos valores. Esses valores que estão aqui, hoje, e que são de pessoas que têm acima 45 anos, resultaram neste país, desta forma. A gente não vai mudar esse país se continuarem os mesmos valores. E estes vêm de um tempo em que a gente tinha a ascensão yuppie, em que o que interessava era simplesmente o dinheiro pelo dinheiro.
FBFE – A que geração você se refere?
Daniela de Rogatis: Uma geração acima da minha, que tem hoje mais de 45 anos. É uma geração que viveu esse boom. Eu falo dos meninos do mercado financeiro, que produziram as grandes bolhas e foram deteriorando o sentido das coisas.
Mudanças à vista
FBFE – Pessoas da geração abaixo dos 45 anos têm condições de realmente melhorar este país, de promover distribuição de renda, fomentar o crescimento produtivo e sustentável, tonar a universidade mais aberta, socialmente falando?
Daniela de Rogatis: Eu acho que sim. Se a gente pegar os valores da geração abaixo da minha idade, 40 para baixo, vai encontrar quem quer colaborar. Que não quer ser registrada numa empresa e ter os benefícios e as prisões das leis trabalhistas. Que quer combinar seus horários, entregas e o valor de trabalho. Gente que não aceita determinado tipo de externalidade do negócio, ou seja, atividades que vão destruir o ecossistema ambiental ou social – eles não vão se engajar nesses projetos. Gente que estuda, que pensa bem, que tem conhecimento e coragem para mudar. Muitos desses jovens – talvez porque o único benefício do Governo Dilma tenha sido ampliar o número dos que tiveram a oportunidade de estudar fora – têm outra visão, uma visão um pouco mais ampla.
FBFE – Você diria que esse jovem está mais pronto para fazer mudanças…
Daniela de Rogatis: E não só isso. Ele também tem uma visão de qualidade de vida muito distinta da geração acima da minha. São pessoas que gostam de andar de bicicleta, em que pais e mães compartilham da formação dos filhos e querem tempo para isso. Enfim, são bons valores. É o resgate da normalidade da necessidade do recurso econômico. Todo mundo precisa ter uma casa, um trabalho e meios de realizar aquilo que deseja. Isso é muito diferente do que acumular recursos econômicos. Eu, que tenho muito contato com a juventude, estou confiante.
FBFE – Ouvindo esses jovens herdeiros você acha que já mudou alguma coisa? E que isto pode se refletir favoravelmente na base da pirâmide social brasileira que, sabidamente, é muito numerosa e muito sofrida?
Daniela de Rogatis: Certamente. Muda a relação com o outro. As pessoas não estão satisfeitas de não poderem sair às ruas e com esta vida organizada da forma que vemos. Esses jovens vão fazer a transformação porque, diferentemente da geração anterior, vão sair do seu conforto, da sua posição de pegar um carro, ou um helicóptero, ir até seu escritório, sua fábrica, trabalhar, receber o resultado econômico disso e viver no seu universo. E vão, da forma que for possível a cada um, encontrar uma área à qual quer se dedicar para transformar. Isso não significa que não haverá equívocos. Há dez anos, se alguém perguntasse a jovens herdeiros quem iria se relacionar com qualquer campo da sociedade, todos se relacionariam dentro de seus escritórios, via fundação, colocando determinado capital para alguém na ponta realizar. Poucos estariam realmente preocupados em sair do seu universo, do seu conforto, para ter uma ação de transformação da sua localidade. Isso muda tudo, muda o país.
FBFE – Pode-se confiar, então, que estes jovens estariam se empoderando deste país no sentido de se responsabilizar por ele e por todas as criaturas que aqui vivem?
Daniela de Rogatis: Eles estão se empoderando, eu diria mais: eles estão se responsabilizando, e também errando e acertando. Muitos desses jovens, por exemplo, já estão trabalhando com o conceito de economia circular, isto é, de que comunidade onde o seu negócio está inserido precisa ser tão próspera e sustentável quanto ele. Já existe um grupo de jovens que entende o seu papel e, se não entende, está procurando formas de entender. É assim que se obtém transformação.
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